Complemento da Ação: Parecer Jurídico sobre o Projeto de Lei nº 115/2025
Objeto: Análise do Projeto de Lei nº 115/2025, de autoria do Vereador Uriel Biazin, que estabelece penalidades para estabelecimentos comerciais que venderem bebidas adulteradas no município de Embu das Artes, sob as perspectivas de vício de iniciativa e conflito com legislação municipal e estadual.
I. Do Projeto de Lei nº 115/2025
O Projeto de Lei nº 115/2025, visa estabelecer medidas rigorosas para combater a comercialização de bebidas adulteradas no município de Embu das Artes. Propõe, em seu Art. 2º, as seguintes penalidades para o responsável pelo estabelecimento:
Multa: No valor de até R$ 100.000,00, a ser determinada pela fiscalização competente.
Cassação do alvará de funcionamento: Nos casos de maior gravidade ou reincidência.
Adicionalmente, o Art. 3º do projeto estabelece que a fiscalização do cumprimento da lei será realizada pelos "órgãos competentes do município". O Art. 5º ainda prevê que, em caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro e a cassação do alvará de funcionamento será considerada automaticamente.
II. Do Vício de Iniciativa
A análise da constitucionalidade e legalidade de um projeto de lei passa, primeiramente, pela verificação de quem possui a competência para deflagrar o processo legislativo (iniciativa da lei). No caso em tela, verifica-se um vício de iniciativa que compromete a validade da proposição.
Competência Privativa do Prefeito Municipal: A Lei Orgânica do Município de Embu das Artes/SP, em seu Art. 46, § 1º, estabelece expressamente as matérias de iniciativa privativa do Prefeito Municipal, destacando-se:
Lei Orgânica do Município de Embu das Artes/SP, Art. 46, § 1º
"São de iniciativa privativa do Prefeito Municipal os projetos de lei que disponham sobre: (...) III - organização administrativa do Poder Executivo e matéria tributária e orçamentária;"
O Projeto de Lei nº 115/2025, ao instituir multas como penalidade (Art. 2º, I), interfere diretamente na matéria tributária e orçamentária do município. As multas, embora de natureza sancionatória, geram receitas que compõem o orçamento público, impactando a gestão financeira do Poder Executivo. A definição de valores, critérios de aplicação e destinação dessas receitas são elementos intrinsecamente ligados à administração financeira municipal, cuja iniciativa para legislar é reservada ao Chefe do Executivo.
Ademais, a previsão de "fiscalização pelos órgãos competentes do município" (Art. 3º do PL) e de cassação do alvará de funcionamento (Art. 2º, II, do PL) implica na criação ou modificação de atribuições de órgãos e na organização da estrutura administrativa municipal. A competência para disciplinar a organização e o funcionamento da administração, bem como a definição de procedimentos fiscalizatórios e sancionatórios de alvarás de funcionamento, pertence igualmente ao Poder Executivo, como forma de autogoverno e auto-organização.
Princípio da Separação de Poderes: A Constituição Federal, em seu Art. 61, § 1º, ao detalhar as competências privativas do Presidente da República para iniciar leis sobre a organização administrativa e matéria orçamentária, reflete um princípio de separação de poderes que se estende aos estados e municípios. Este princípio visa preservar a autonomia e o equilíbrio entre os Poderes, impedindo que o Legislativo invada a esfera de gestão e organização do Executivo. A iniciativa parlamentar para criar penalidades administrativas que afetam a receita e a organização do Executivo sem sua proposição configura uma indevida interferência, caracterizando o vício de iniciativa.
III. Conflito com a Lei Municipal nº 2.963/2017 (Código de Posturas)
Além do vício de iniciativa, o Projeto de Lei nº 115/2025 apresenta um potencial conflito com a Lei nº 2.963/2017, o Código de Posturas Municipal, já em vigor. O Código de Posturas já possui um arcabouço legal para tratar de questões de higiene, saúde pública e funcionamento de estabelecimentos, incluindo penalidades.
Higiene e Saúde Pública: O Título III, Capítulo I, da Lei 2.963/2017, trata da higiene pública, com o Art. 19 elencando a fiscalização de condições de higiene em "estabelecimentos comerciais, industriais e de prestação de serviços" (III), e o "controle da manipulação, venda e distribuição de medicamentos" (IX), indicando uma abrangência de preocupação com a saúde em estabelecimentos.
Penalidades Existentes para Riscos à Saúde: O Art. 68 do Código de Posturas estabelece que:
Lei 2.963/2017, Art. 68
"Aquele que infringir as normas existentes quanto ao acondicionamento e despejo de resto de material que possa colocar em risco a saúde de outrem será multado, sendo que no caso de estabelecimento, este terá o seu alvará de funcionamento cassado."
Este artigo já prevê penalidades de multa e cassação de alvará para infrações que coloquem em risco a saúde. A comercialização de "bebidas adulteradas" se enquadra perfeitamente na descrição de "material que possa colocar em risco a saúde de outrem". Ao propor novas e específicas penalidades para o mesmo tipo de conduta (risco à saúde por meio de produtos em estabelecimentos), o PL nº 115/2025 cria uma dualidade ou sobreposição de regimes sancionatórios no âmbito municipal. Isso pode gerar insegurança jurídica, dificultar a aplicação da lei e resultar em procedimentos fiscalizatórios e punitivos conflitantes, sendo que a matéria já está disciplinada, ainda que de forma mais genérica, por lei municipal anterior.
Cassação de Licença: O Art. 360, § 2º, da Lei 2.963/2017 já dispõe sobre a cassação de licença de funcionamento:
Lei 2.963/2017, Art. 360, § 2º
"A licença poderá ser cassada, com a determinação de fechamento do estabelecimento, a qualquer tempo, quando as condições que legitimaram a concessão da licença deixar de existir, ou quando o contribuinte, mesmo após a aplicação das penalidades cabíveis, não cumprir as determinações da Prefeitura Municipal com vistas à regularização da situação do estabelecimento."
Esta previsão geral já permite a cassação de alvarás em caso de descumprimento de determinações municipais que afetem a regularidade do funcionamento, o que incluiria a venda de bebidas adulteradas. A criação de um novo dispositivo para cassação de alvará por esta mesma infração, com critérios potencialmente distintos (como a "cassação automática" em caso de reincidência prevista no Art. 5º do PL 115/2025), pode gerar antinomias jurídicas.
IV. Conflito com a Lei Estadual nº 10.083/1998 (Código Sanitário do Estado de São Paulo)
Quanto a Lei Estadual nº 10.083/1998 (Código Sanitário do Estado de São Paulo), é fundamental considerar a hierarquia das normas. Em temas de saúde pública e vigilância sanitária, a competência legislativa é concorrente, ou seja, a União estabelece normas gerais, os Estados exercem a competência suplementar e os Municípios podem suplementar as legislações federal e estadual no que couber, conforme o Art. 30, II, da Constituição Federal.
Considerando que a Lei Estadual nº 10.083/1998 já disciplina a matéria de fiscalização, penalidades e procedimentos administrativos para a comercialização de produtos que ofereçam risco à saúde, incluindo bebidas adulteradas, uma lei municipal que trate do mesmo tema deve atuar em caráter suplementar, detalhando ou especificando aspectos sem contradizer a legislação estadual.
A criação de um novo regime de penalidades (multa e cassação de alvará) por lei municipal, se a lei estadual já prevê sanções para a mesma conduta, pode configurar:
Usurpação de Competência: Se a lei estadual já exauriu a matéria de forma exaustiva, o município não poderia legislar.
Conflito de Normas: Se as penalidades ou os ritos processuais administrativos estabelecidos pela lei municipal forem diferentes ou mais brandos/rígidos do que os da lei estadual, pode-se gerar um conflito, prevalecendo a norma estadual por ser hierarquicamente superior (dentro da competência concorrente, a lei estadual estabelece padrões mínimos ou gerais que o municipal deve observar).
Para que o Projeto de Lei Municipal fosse válido nesse aspecto, ele precisaria se harmonizar com o Código Sanitário Estadual, preferencialmente atuando na execução de suas diretrizes ou detalhando aspectos específicos sem contrariá-lo.
V. Conclusão Final
Diante do exposto, o Projeto de Lei nº 115/2025, de autoria parlamentar, apresenta sérios óbices jurídicos:
Vício de Iniciativa: A proposição, ao instituir novas penalidades pecuniárias (multas) e regulamentar a cassação de alvarás, bem como ao tratar de fiscalização em estabelecimentos comerciais, adentra em matérias de cunho administrativo e financeiro, cuja iniciativa legislativa é privativa do Chefe do Poder Executivo, configurando uma violação ao princípio da separação de poderes.
Conflito com Legislação Municipal Existente: Há sobreposição e potencial conflito com a Lei nº 2.963/2017 (Código de Posturas Municipal), que já contém previsões para penalidades de multa e cassação de alvará para estabelecimentos que coloquem em risco a saúde pública. A criação de um novo regime sancionatório específico pode gerar duplicidade e insegurança jurídica.
Potencial Conflito com Legislação Estadual: Considerando a natureza da matéria (saúde pública e vigilância sanitária), é provável que a Lei Estadual nº 10.083/1998 (Código Sanitário do Estado de São Paulo) já discipline aspectos relacionados à comercialização de produtos que afetem a saúde. Qualquer lei municipal sobre o tema deve respeitar a hierarquia e a competência suplementar, não podendo contrariar as normas estaduais.
Portanto, o projeto, tal como apresentado, padece de inconstitucionalidade formal e material, sendo recomendada sua rejeição ou a reformulação completa, com a devida iniciativa por parte do Poder Executivo e em observância às legislações municipal e estadual vigentes.
HÉLIO DA COSTA MARQUES
Matr. 1166
OAB/SP 301102
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